Mostrando postagens com marcador reflexões. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador reflexões. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 6 de março de 2024

Anatomia de uma Queda - Reflexões


Há alguns anos atrás, publiquei no Cinema Vírgula a primeira participação de um convidado, onde minha amiga e psicóloga Vanessa Calderelli escreveu um texto sobre reflexões sobre o ótimo filme Meu Pai. E para minha alegria, ela está de volta, hoje para trazer suas reflexões sobre outro filme excelente: Anatomia de uma Queda.

Reforço que o texto irá contar bastante coisa sobre o enredo de Anatomia de uma Queda, portanto, só fará sentido para quem já viu o filme. E é isto... aproveitem! :)



Anatomia de uma Queda

O que faz uma pessoa cair? Após 2h30 de um filme denso saí do cinema com essa pergunta martelando na minha cabeça. 

O filme começa com o encontro de uma jovem pesquisadora com Sandra, que aparentemente descontraída abre espaço em sua residência para uma entrevista, o tema da entrevista não fica claro ao expectador, à medida que as perguntas se iniciam o volume de uma música reproduzida no andar superior da casa por Samuel, marido de Sandra, impede que o encontro aconteça. A impressão inicial é que cada vez que uma pergunta acontecia o ‘barulho’ aumentava. A sensação é de incômodo, que permanece no decorrer da trama, quase como se fosse possível enxergar com um borrão o que estava se passando ali. 

Um ato agressivo do marido para impedir a esposa a dar entrevista? Um ato defensivo para se proteger do barulho que o conteúdo da entrevista causava nele? A ambivalência sentida nesta primeira cena percorre todo o filme. Uma melodia que parece agradável no primeiro tom, mas vai se tornando incômoda pela repetição das notas graves.  

Como disse anteriormente, o filme é denso e se desenrola a partir da morte do homem / pai / marido / escritor / professor. Não se sabe nada sobre ele até então, apenas que ouve som alto quando precisa pensar. Na primeira cena em que aparece seu corpo está estatelado no chão de sua casa, na neve. Seu filho o encontra morto, uma cena desesperadora. 

A partir desta cena a narrativa se desenvolve. O que aconteceu ali? 

Uma investigação, um indiciamento, um julgamento. Ele se jogou ou ela fez isso. É isso que está em questão. Assassinato ou suicídio. Cenário frio, gelado. A casa por terminar. O menino com seu cão. A mulher com uma tensão disfarçada. A música alta que impede a atenção e o pensamento. Entrevista interrompida. Vida interrompida. A sequência dos acontecimentos não foi essa descrita aqui por mim, mas tudo inicialmente acontece num caos ordenado ou numa ordem caótica. Me parece que o filme todo se dá assim. Conhecemos a história do casal em fragmentos, no julgamento da mulher / esposa / mãe / escritora e escrevo assim pois são estes os papéis que estão sendo julgados, o tempo todo. A violência na entrelinha do dia a dia, a depressão, a dificuldade de lidar com a vida, com as culpas, com a impotência, com a relação. O que não é visto ou o que é negligenciado?

Há uma tragédia que precede a tragédia. O atropelamento do filho Daniel quando tinha 4 anos, sob os cuidados do pai, que imerso em seu próprio mundo se descuidou do horário da escola. Aqui é possível perceber a dinâmica do casal pré-acidente, que como qualquer outro casal, faz combinados para que as funções de cuidado sejam divididas entre pai e mãe, revezando-se nas tarefas parentais. Após o acidente que deixou Daniel com a visão muito comprometida pelo rompimento do nervo ótico, várias questões emergem na relação conjugal. Um jogo de projeções e culpas, cobranças, traição, depressão. A dificuldade de comunicação entre Sandra e Samuel que originalmente não falam a mesma língua, ela alemã e ele francês, e provavelmente diferenças culturais para lidar com afetos e emoções não possibilitou um espaço continente para lidar com o acidente do filho. A família se comunicava em inglês, pois havia morado em Londres desde o nascimento de Daniel. Este é também um aspecto importante no julgamento, em qual idioma a emoção pode ser contada.

O filme é sobre a anatomia de uma queda, mas eu diria que é mais sobre uma dissecação da relação conjugal que precisa ser ouvida, vista e sentida nas minucias, no detalhe. De uma dor que não pode ser contada em vida e precisou da morte para isso. Dentre juízes, promotores, testemunhas, réu e advogados é o jogo de acusações e defesas que faz tanto mal... lembrei da música Grito de Alerta do Gonzaguinha. 

Não é possível deixar de comentar que Daniel se apresenta desde o início com uma surpreendente lucidez, sem negar o sofrimento. Decide acompanhar todo o julgamento. Cego, praticamente inicia sua própria investigação utilizando outros recursos para compreender o que causou a morte seu pai, evitar que sua mãe seja presa e explicar a sua própria tragédia, a cegueira.  Mostra coragem, perspicácia e sensibilidade. Muito provavelmente precisou desenvolver habilidades para lidar com a dinâmica narcísica dos pais e ao mesmo tempo que houve o investimento deles em sua própria independência. Aos olhos da mãe (fala dita ao final do julgamento) “ele está crescendo e bem”, aos olhos do pai culpa, por se sentir impotente. No caso de Daniel, não há como minimizar a dor, fazer isso seria negar todas as suas percepções a cerca do que acontece a sua volta, inclusive sua surpresa sobre o que acontecia na intimidade relacional dos pais (diferenças e divergências comuns a muitos casais).

Assassinato ou suicídio? O que faz uma pessoa cair, senão o que não pode mais ser sustentado?  Sempre há indícios... sempre. No caso do filme, a vida e a intimidade do casal são expostas para o júri como vísceras na aula de anatomia, o cadáver exposto no centro, quem apresenta no centro e quem assiste ao redor. Isso foi algo que me chamou a atenção. A fala estarrecedora do filho no final do julgamento dizendo que não são os fatos que justificam o caso, mas o que leva aos fatos. Deixa todos de boca aberta no final, inclusive a juíza.

Uma cena importante no julgamento é a do psiquiatra que acompanhava Samuel. Ele descreve o ponto de vista do paciente a respeito das queixas sobre a relação conjugal, é testemunha da acusação. Sandra se defende dizendo que se a terapeuta dela estivesse ali certamente falaria também das queixas dela em relação ao marido. As queixas individuais sempre são sobre pontos de vistas parciais. A questão que está sendo investigada no filme diz respeito à dinâmica do casal, portanto só seria possível de serem analisadas de forma preventiva e dinâmica numa sessão onde ambos estivessem, portanto, numa terapia de casal. A partir disso seria possível buscar compreender e cuidar dos motivos que levaram o casal à crise, buscando uma saída mais saudável, que não a morte.

Ninguém sabe o que acontece numa relação até que a dinâmica e a problemática seja exposta. As gravações em áudio, em especial a última, ambivalente e contraditória, não teria sido a forma póstuma de comunicar seu sofrimento? Uma carta suicida ou uma acusação à esposa? A cena da discussão que está no áudio é muito angustiante, principalmente porque revela algo comum aos casais em crise. Que cena! 

Algo da ordem do insuportável é o que fica exposto, é o que leva à morte, é a marca do vazio que fica na queda, no gelado da neve, na casa inacabada, nas vidas dos que ficam. No luto de uma relação impossível de lidar em vida. Naquilo que provoca a queda dos que vivem e dos que morrem. 

Anatomicamente não se vê a emoção, nem o que liga uma pessoa à outra. Tais emoções só podem ser enxergados nos vínculos e nas marcas daqueles que vivem, antes da queda ou na dor daqueles que sobrevivem a ela.


Vanessa T. Calderelli é psicóloga clínica há 20 anos, psicanalista de casal e família. Mestre em Psicologia Clínica Social pela Puccamp. Especialista em Psicoterapia Breve Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae e pela Unicamp. Terapeuta voluntária do Napc (Núcleo de Atendimento e Pesquisa da Conjugalidade e Família) do Instituto Sedes Sapientiae. Membro da ABPCF (Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família).

sábado, 24 de abril de 2021

Meu Pai – Reflexões sobre cuidados e perdas


Gostei tanto do filme Meu Pai, que lhes trago uma novidade: pela primeira vez em meu blog, publico um texto que não fui em quem escreveu. Ele é de autoria da minha amiga Vanessa, psicóloga, e não é uma análise cinematográfica sobre o filme: trata-se de suas impressões e reflexões após tê-lo assistido.

O texto a seguir apresentará vários spoilers, portanto é bem melhor que você o leia apenas após ter visto o filme. Vá assistir Meu Pai e depois volte aqui para apender um bocado. Espero que vocês gostem tanto do texto da Vanessa quanto eu gostei. Abraços!



O filme é muito comovente. Mostra o demenciamento a partir da vivência de Anthony, o mesmo nome do ator (Anthony Hopkins), e isso no decorrer do filme nos confunde e nos faz questionar se é a perspectiva do ator ou apenas uma coincidência com o nome do personagem. A sensação de confusão é uma característica importante na forma como a história é narrada, o que nos leva a ficar mais próximo da experiência emocional da senilidade.

Nos sentimos perdidos e vulneráveis frente ao processo de desrealização que a demência provoca. Alucinações visuais, auditivas, perda da noção de tempo e espaço são sintomas psicóticos da demência, muito bem representada no filme. A regressão das capacidades mentais de Anthony é uma decorrência da senilidade, ou seja, um processo de desligamento "natural" do cérebro.

Pensando nos vínculos é possível perceber que foi uma família com uma história marcada por conflitos e perdas, ou seja, uma família comum. Não temos a oportunidade de conhecer mais a fundo tais relações familiares, mas vemos um contexto de cuidado e amor. Anne é o vínculo real, aquele que Anthony busca para saber que está seguro no fim da vida, assim como a mãe e o bebê, no início de tudo. Está com medo, não aceita outras cuidadoras, recusa-as assim como à doença.

De maneira geral, a constatação da vulnerabilidade da vida, do não controle e da impotência frente às perdas e ao envelhecimento, gera sentimentos ambivalentes que são demonstrados, por exemplo, através da agressividade e carinho de Anthony à filha. Já Anne se dedica ao pai até o limite de suas possibilidades e os seus sentimentos naturais de ambivalência aparecem também: amor, raiva, medo, coragem, desejo de morte, acolhimento, etc. Ela sofre pelo paradoxo de lidar com sua impotência frente à doença e pelo desejo de viver uma nova vida. Decide por trata-lo numa instituição e isso em nossa sociedade é uma decisão muito difícil e passível de julgamento. 

É inevitável pensar nas diferenças entre a elaboração da morte como um processo natural da vida e na dificuldade de elaboração do luto no caso de morte acidental. Anthony perdeu a outra filha vítima de um acidente que deixou marcas de difícil assimilação para ele. Por fim, o filme nos mostra o processo triste e irreversível da constatação do envelhecimento e da morte como um processo solitário, frente à demência. Sim, as folhas caem, os galhos secam, o tronco enfraquece, perde-se a sensação do vento!!

Em relação aos detalhes cenográficos que me chamam a atenção, o primeiro que me deixa intrigada são as várias portas que aparecem no apartamento, em todas as cenas, e que nos aproxima da vivência de Anthony, nos deixando meio perdidos, com muitas entradas e saídas que levam ao mesmo lugar; os vários objetos no apartamento, que podem indicar uma vida cheia de histórias e vão saindo de cena no decorrer do filme e os dois homens que trazem um clima de rivalidade masculina às cenas. Em relação aos objetos e aos homens a confusão fica por conta de não sabermos ao certo se é pelo impacto da notícia da mudança da filha ou se são parte do delírio. Nem sabemos se a mudança da filha para Paris é real. As roupas de Anne se tornam um marcador temporal e espacial, como se cada roupa indicasse um dia específico. Outro objeto importante e central é o relógio, pela referência ao tempo, controle e claro, realidade. A desorientação temporal é um dos sintomas psicóticos, na demência. 

Ao final, já no quarto da instituição, existe apenas uma porta, ou seja, uma possibilidade de acessar a realidade o que leva Anthony a um momento de lucidez (sustentada por pouco tempo) e então, ele sente!  Essa cena é para mim a mais comovente, marcada pela constatação da perda da onipotência. Ele 'desmonta' nos braços da enfermeira, chora (e nós também) como uma criança pequena pedindo pela mãe. Na última cena com as árvores cheias de folhas do lado de fora mostra que a vida segue acontecendo e que a morte pelo envelhecimento é um processo, não um acidente.

Vanessa T. Calderelli Winkler

Crítica - Em Ritmo de Fuga (2017)

Título :  Em Ritmo de Fuga ("Baby Driver", EUA / Reino Unido, 2017) Diretor : Edgar Wright Atores principais : Ansel Elgort, K...