sexta-feira, 8 de março de 2024

Especial Dia Internacional da Mulher: Atriz e inventora, conheça a incrível (e conturbada) história de Hedy Lamarr

Hedy Lamarr (Hedwig Eva Maria Kiesler) nasceu em Viena (Áustria) no dia 9 de novembro de 1914. Curiosa por natureza, e também incentivada pelo pai, já criança costumava desmontar as coisas para ver como funcionavam. De família judia, por ser filha de um banqueiro pôde receber educação particular, sendo que com cerca de 10 anos já era uma boa bailarina, pianista e falava quatro idiomas. Aos 16 anos ela começou a atuar em filmes pela Europa, mas seria dois anos depois, aos 18, onde ganharia fama graças ao polêmico filme checo Ecstasy (1933).

Traumático para a atriz, Ecstasy ficou famoso com Hedy interpretando aquela que é considerada a primeira cena de orgasmo da história do Cinema mundial, além de trazer algumas cenas de nudez. Em entrevistas posteriores, Lamarr contou que foi duplamente enganada. Ingênua e ansiosa para fazer o filme, acabou assinando contrato sem o ler direito, e quando ela se recusou a tirar a roupa a pedido do diretor Gustav Machatý, ele disse que então ela teria que pagar por todas as filmagens até então se fosse desistir da produção. E mais ainda, para "tranquilizá-la", prometeu que as filmagens seriam de longe, o que não permitiriam o espectador perceber muitos detalhes. Foi apenas depois que as tomadas foram feitas que Hedy viu que as cenas foram filmadas em close.

No mesmo ano de 1933, Hedy iniciaria o primeiro de seus seis casamentos, com Friedrich Mandl, um rico austríaco fabricante de munições e armas. Seu marido, absurdamente controlador, acabou com sua carreira de atriz e praticamente a mantinha presa em casa, em cativeiro (além de tentar infrutiferamente destruir as cópias do filme Ecstasy). E ainda piora: sendo simpatizante de Mussolini e Hitler, seus clientes, Mandl frequentemente a levava para reuniões nazistas. Lamarr só sairia deste pesadelo em 1937, através de um plano engenhoso e quase "cinematográfico".

Foram meses de planejamento: primeiro ela pediu ao marido para ter uma criada à sua disposição, criada esta que Hedy escolheu especificamente para ter o mesmo porte, altura e cor de cabelo. A fuga aconteceu na noite de um jantar importante, onde Lamarr aproveitou para colocar em seu corpo todas as jóias que possuía. Em dado momento, fingiu passar mal, e junto com a criada se retirou para descansar. Então Hedy colocou a criada para dormir com um sonífero, roubou e vestiu seu uniforme, e assumindo o "papel" de sua empregada, saiu da casa sem despertar suspeitas. Ela então fugiria de lá de bicicleta com suas jóias, deixando a Áustria para a França, e posteriormente, para a Inglaterra.

O tempo sem atuar não fez o mundo esquecê-la. Tanto que a maior inspiração para o visual de Branca de Neve, na inovadora animação de 1937 da Walt Disney, foi justamente ela. Hedy Lamarr inspirou não apenas a aparência, como também os estilos de maquiagem e penteado da personagem. Em 1938 ela se mudaria para os EUA, e já com um contrato assinado com a MGM para ser atriz em Hollywood.

Hedy Lamarr chegou aos Estados Unidos sendo promovida como a "mais bela mulher do mundo", alcunha que a acompanhou por muitos anos da carreira. Apesar dos esforços da MGM em transformá-la em uma grande estrela, o plano não deu tão certo. As bilheterias de seus filmes acabaram alternando entre desempenhos bons e ruins. Hedy não era uma atriz excepcional, mas ela também era prejudicada por ser escalada apenas para o mesmo papel de mulher bela e sedutora, além de ser colocada propositalmente em alguns filmes menores por Louis B. Mayer. Insatisfeita, Lamarr deixou a MGM e em 1946 produziu o primeiro dos seus filmes, Flor do Mal (The Strange Woman no original), em um movimento bem ousado para a época, especialmente em se tratando de mulheres.

Em seus últimos trabalhos ela se alternou entre filmes independentes (alguns produzidos por ela mesma) e filmes de grandes estúdios, sendo um destes o seu maior sucesso de público, o épico Sansão e Dalila de 1949, da Paramount Pictures, onde ela fazia o papel da Dalila, claro (ver foto abaixo). No total foram quase 30 filmes em solo estadunidense, no período entre as décadas de 30 a 50.

Se durante o dia Hedy era a bela atriz, a noite ela era a inventora, e passava parte do seu tempo em sua casa, se distraindo com as invenções mais diversas. A maioria de suas criações eram soluções práticas para problemas cotidianos, como por exemplo uma caixa de lenços de papel para depositar lenços usados, uma coleira de cachorro que brilhava no escuro, ou uma cadeira para ser acoplada no chuveiro, para que as pessoas que não conseguissem ficar em pé pudessem tomar banho e depois girar para se secar.

Hedy conheceu - e até teve um breve relacionamento - com Howard Hughes: aviador, engenheiro e empresário. Ele lhe deu de presente um "mini laboratório", que Lamarr instalou em seu trailer e com isso também podia se entreter durante o intervalo das gravações dos filmes. Quando Hughes reclamou a Hedy que achava que os aviões ainda eram lentos, ela estudou a respeito e baseando-se na aerodinâmica de peixes e aves, devolveu a ele um projeto para novas asas, à qual Howard replicou que ela era um gênio. Durante a guerra, com objetivo de fazer chegar refrigerantes aos combatentes, com a ajuda de dois químicos emprestados por Hughes, Hedy tentou compactar e transformar a Coca-Cola em pastilha, para ser consumida após dissolvida em água. Porém, ela não conseguiu contornar o problema de que a composição da água que as pessoas bebiam variava de região em região, e então sua tentativa fracassou, como ela mesmo admitiria aos risos. 

Porém a grande invenção de Hedy Lamarr, a qual ela desenvolveu junto com seu amigo e compositor musical George Antheil, foi o sistema que seria batizado de “salto em freqüência”. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, e Hedy pensava em... torpedos. Ela estava bastante chocada com um episódio onde um torpedo alemão afundou um navio britânico com refugiados, matando 77 crianças.

Na época se tentava controlar a direção dos torpedos via rádio, e se a (única) frequência da transmissão fosse detectada, a arma era facilmente interceptada. Conta a história que em uma noite, Hedy e George "brincavam" de dueto em frente a um piano, com ela repetindo em outra escala as notas que ele tocava. Então, Lamarr teve o "estalo" de que poderia fazer o mesmo com transmissões de rádio: se o emissor e o receptor mudassem constantemente de frequência, os dois poderiam se comunicar sem medo de serem interceptados.

Os infelizes anos ao lado Friedrich Mandl permitiram que Hedy Lamarr também aprendesse sobre tecnologias relacionadas a armamentos, e isto ajudou no desenvolvimento de sua nova invenção, algo que iria permitir o disparo de torpedos com mais precisão e sem aparecer nos radares dos inimigos. A criação de Hedy e George Antheil foi patenteada e eles a levaram para a Marinha estadunidense, para que fosse usada na Guerra o quanto antes. Porém, por preconceito e machismo não apenas sua idéia foi recusada, como também lhe disseram que se ela quisesse mesmo contribuir na Guerra, que usasse sua beleza para fazer campanhas e propagandas para vender bônus de guerra. E mesmo recebendo este tratamento, assim ela o fez, sendo que Lamarr ajudou a vender quase 25 milhões de dólares dos tais bônus.

A tal invenção de Hedy Lamarr foi ignorada completamente pela Marinha até 1962, quando foi usada por eles na Crise dos Mísseis em Cuba. E somente nos anos 80 os militares liberaram a tecnologia para ser utilizada comercialmente. Desta forma, o tal sistema de “salto em freqüência” foi a base para tecnologias de hoje como WiFi, Bluetooth, e GPS.

Hedy Lamarr não recebeu nenhum tostão por sua invenção em toda sua vida (estima-se que ela valeria 30 bilhões de dólares em valores atuais). E somente em 1997 ela e George receberam um primeiro grande reconhecimento público pela sua criação, o EFF Pioneer Award, concedido pelo Electronic Frontier Foundation para pessoas que fizeram "contribuições importantes para a eletrônica". Hedy morreria três anos depois (em janeiro de 2000), com George Antheil já tendo falecido em 1959.

Uma outra homenagem interessante é que em 2005 os inventores e empresários alemães Gerhard Muthenthaler e Marijan Jordan proclamaram o dia 9 de novembro (dia do nascimento de Hedy) como sendo o Dia do Inventor. Embora não tenha sido seguida por todo o mundo, principalmente países de língua alemã como a Alemanha, Áustria e Suíça adotaram esta data.


Conforme as décadas iam passando, ela foi ficando cada vez mais melancólica e pessimista, e algumas de suas declarações que ficaram famosas foram “Meu rosto foi minha ruína”, e "Qualquer garota pode ser glamourosa. Tudo que você precisa fazer é ficar parada e parecer estúpida.".

Hedy Lamarr passou as duas últimas décadas de sua vida cada vez mais reclusa, em sua casa na Flórida, vivendo apenas com uma pequena aposentadoria e de uma pensão do Sindicato dos Atores. Com as pessoas comentando sobre o declínio de sua beleza, Lamarr realizou algumas cirurgias plásticas, porém não teve bons resultados e isto aumentou ainda mais sua reclusão. Em seus últimos anos, seu contato com o mundo exterior era basicamente via telefone, onde ela passava horas diárias conversando com familiares e amigos.

Em 2017 tivemos o lançamento do filme-documentário estadunidense Bombástica: A História de Hedy Lamarr (Bombshell: The Hedy Lamarr Story), que passou com sucesso por alguns festivais importantes (sendo o de Tribeca o maior deles). Mas ele teve exibições modestas em cinemas e nem chegou ao Brasil. O documentário também chegou a ser exibido nos EUA via canais PBS e Netflix.

Eu assisti Bombástica, e posso afirmar que é muito bom, recomendo! Ainda assim, como se pode notar, não tivemos um filme realmente "grande" sobre Hedy Lamarr, sendo adequadamente divulgado e lançado nas Telonas do mundo todo. Porém, vídeos e textos como este meu, resgatando sua história e contribuições felizmente estão ficando mais frequentes. Então quem sabe... que um dia ela tenha na própria Hollywood uma produção digna em reconhecimento pela sua inteligência e contribuições. Até lá, divulguem este artigo! ;)



PS: já leu os outros artigos especiais aqui do Cinema Vírgula sobre o Dia Internacional da Mulher? Se ainda não, aproveite e clique nos links abaixo!

2022: conheça Roberta Williams e suas revoluções para o mundo dos Videogames

2020: Lucille Ball e seu enorme legado para a cultura POP

quarta-feira, 6 de março de 2024

Anatomia de uma Queda - Reflexões


Há alguns anos atrás, publiquei no Cinema Vírgula a primeira participação de um convidado, onde minha amiga e psicóloga Vanessa Calderelli escreveu um texto sobre reflexões sobre o ótimo filme Meu Pai. E para minha alegria, ela está de volta, hoje para trazer suas reflexões sobre outro filme excelente: Anatomia de uma Queda.

Reforço que o texto irá contar bastante coisa sobre o enredo de Anatomia de uma Queda, portanto, só fará sentido para quem já viu o filme. E é isto... aproveitem! :)



Anatomia de uma Queda

O que faz uma pessoa cair? Após 2h30 de um filme denso saí do cinema com essa pergunta martelando na minha cabeça. 

O filme começa com o encontro de uma jovem pesquisadora com Sandra, que aparentemente descontraída abre espaço em sua residência para uma entrevista, o tema da entrevista não fica claro ao expectador, à medida que as perguntas se iniciam o volume de uma música reproduzida no andar superior da casa por Samuel, marido de Sandra, impede que o encontro aconteça. A impressão inicial é que cada vez que uma pergunta acontecia o ‘barulho’ aumentava. A sensação é de incômodo, que permanece no decorrer da trama, quase como se fosse possível enxergar com um borrão o que estava se passando ali. 

Um ato agressivo do marido para impedir a esposa a dar entrevista? Um ato defensivo para se proteger do barulho que o conteúdo da entrevista causava nele? A ambivalência sentida nesta primeira cena percorre todo o filme. Uma melodia que parece agradável no primeiro tom, mas vai se tornando incômoda pela repetição das notas graves.  

Como disse anteriormente, o filme é denso e se desenrola a partir da morte do homem / pai / marido / escritor / professor. Não se sabe nada sobre ele até então, apenas que ouve som alto quando precisa pensar. Na primeira cena em que aparece seu corpo está estatelado no chão de sua casa, na neve. Seu filho o encontra morto, uma cena desesperadora. 

A partir desta cena a narrativa se desenvolve. O que aconteceu ali? 

Uma investigação, um indiciamento, um julgamento. Ele se jogou ou ela fez isso. É isso que está em questão. Assassinato ou suicídio. Cenário frio, gelado. A casa por terminar. O menino com seu cão. A mulher com uma tensão disfarçada. A música alta que impede a atenção e o pensamento. Entrevista interrompida. Vida interrompida. A sequência dos acontecimentos não foi essa descrita aqui por mim, mas tudo inicialmente acontece num caos ordenado ou numa ordem caótica. Me parece que o filme todo se dá assim. Conhecemos a história do casal em fragmentos, no julgamento da mulher / esposa / mãe / escritora e escrevo assim pois são estes os papéis que estão sendo julgados, o tempo todo. A violência na entrelinha do dia a dia, a depressão, a dificuldade de lidar com a vida, com as culpas, com a impotência, com a relação. O que não é visto ou o que é negligenciado?

Há uma tragédia que precede a tragédia. O atropelamento do filho Daniel quando tinha 4 anos, sob os cuidados do pai, que imerso em seu próprio mundo se descuidou do horário da escola. Aqui é possível perceber a dinâmica do casal pré-acidente, que como qualquer outro casal, faz combinados para que as funções de cuidado sejam divididas entre pai e mãe, revezando-se nas tarefas parentais. Após o acidente que deixou Daniel com a visão muito comprometida pelo rompimento do nervo ótico, várias questões emergem na relação conjugal. Um jogo de projeções e culpas, cobranças, traição, depressão. A dificuldade de comunicação entre Sandra e Samuel que originalmente não falam a mesma língua, ela alemã e ele francês, e provavelmente diferenças culturais para lidar com afetos e emoções não possibilitou um espaço continente para lidar com o acidente do filho. A família se comunicava em inglês, pois havia morado em Londres desde o nascimento de Daniel. Este é também um aspecto importante no julgamento, em qual idioma a emoção pode ser contada.

O filme é sobre a anatomia de uma queda, mas eu diria que é mais sobre uma dissecação da relação conjugal que precisa ser ouvida, vista e sentida nas minucias, no detalhe. De uma dor que não pode ser contada em vida e precisou da morte para isso. Dentre juízes, promotores, testemunhas, réu e advogados é o jogo de acusações e defesas que faz tanto mal... lembrei da música Grito de Alerta do Gonzaguinha. 

Não é possível deixar de comentar que Daniel se apresenta desde o início com uma surpreendente lucidez, sem negar o sofrimento. Decide acompanhar todo o julgamento. Cego, praticamente inicia sua própria investigação utilizando outros recursos para compreender o que causou a morte seu pai, evitar que sua mãe seja presa e explicar a sua própria tragédia, a cegueira.  Mostra coragem, perspicácia e sensibilidade. Muito provavelmente precisou desenvolver habilidades para lidar com a dinâmica narcísica dos pais e ao mesmo tempo que houve o investimento deles em sua própria independência. Aos olhos da mãe (fala dita ao final do julgamento) “ele está crescendo e bem”, aos olhos do pai culpa, por se sentir impotente. No caso de Daniel, não há como minimizar a dor, fazer isso seria negar todas as suas percepções a cerca do que acontece a sua volta, inclusive sua surpresa sobre o que acontecia na intimidade relacional dos pais (diferenças e divergências comuns a muitos casais).

Assassinato ou suicídio? O que faz uma pessoa cair, senão o que não pode mais ser sustentado?  Sempre há indícios... sempre. No caso do filme, a vida e a intimidade do casal são expostas para o júri como vísceras na aula de anatomia, o cadáver exposto no centro, quem apresenta no centro e quem assiste ao redor. Isso foi algo que me chamou a atenção. A fala estarrecedora do filho no final do julgamento dizendo que não são os fatos que justificam o caso, mas o que leva aos fatos. Deixa todos de boca aberta no final, inclusive a juíza.

Uma cena importante no julgamento é a do psiquiatra que acompanhava Samuel. Ele descreve o ponto de vista do paciente a respeito das queixas sobre a relação conjugal, é testemunha da acusação. Sandra se defende dizendo que se a terapeuta dela estivesse ali certamente falaria também das queixas dela em relação ao marido. As queixas individuais sempre são sobre pontos de vistas parciais. A questão que está sendo investigada no filme diz respeito à dinâmica do casal, portanto só seria possível de serem analisadas de forma preventiva e dinâmica numa sessão onde ambos estivessem, portanto, numa terapia de casal. A partir disso seria possível buscar compreender e cuidar dos motivos que levaram o casal à crise, buscando uma saída mais saudável, que não a morte.

Ninguém sabe o que acontece numa relação até que a dinâmica e a problemática seja exposta. As gravações em áudio, em especial a última, ambivalente e contraditória, não teria sido a forma póstuma de comunicar seu sofrimento? Uma carta suicida ou uma acusação à esposa? A cena da discussão que está no áudio é muito angustiante, principalmente porque revela algo comum aos casais em crise. Que cena! 

Algo da ordem do insuportável é o que fica exposto, é o que leva à morte, é a marca do vazio que fica na queda, no gelado da neve, na casa inacabada, nas vidas dos que ficam. No luto de uma relação impossível de lidar em vida. Naquilo que provoca a queda dos que vivem e dos que morrem. 

Anatomicamente não se vê a emoção, nem o que liga uma pessoa à outra. Tais emoções só podem ser enxergados nos vínculos e nas marcas daqueles que vivem, antes da queda ou na dor daqueles que sobrevivem a ela.


Vanessa T. Calderelli é psicóloga clínica há 20 anos, psicanalista de casal e família. Mestre em Psicologia Clínica Social pela Puccamp. Especialista em Psicoterapia Breve Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae e pela Unicamp. Terapeuta voluntária do Napc (Núcleo de Atendimento e Pesquisa da Conjugalidade e Família) do Instituto Sedes Sapientiae. Membro da ABPCF (Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família).

terça-feira, 5 de março de 2024

Crítica - Anatomia de uma Queda (2023)

TítuloAnatomia de uma Queda ("Anatomie d'une Chute", França, 2023)
Diretora: Justine Triet
Atores principaisSandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner, Antoine Reinartz, Samuel Theis, Jehnny Beth, Saadia Bentaieb, Messi
Nota: 8,0

Filme mistura tribunal, "whodunnit" e reflexão com eficiência

O filme francês Anatomia de uma Queda tem sido um dos mais elogiados e premiados filmes não-estadunidenses em 2023 e 2024. Cinco indicações para o Oscar, vencedor do cobiçado Palma de Ouro em Cannes (ou seja, o prêmio de Melhor Filme), vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme em língua não-inglesa, dentre várias outras premiações. Além disso, com esta obra, a diretora francesa Justine Triet conseguiu ser a terceira mulher a levar a Palma de Ouro. Ela também está indicada ao Oscar de Melhor Direção e ao Oscar de Melhor Roteiro Original - sendo em ambos os casos a primeira vez de uma mulher francesa.

Na história temos a escritora alemâ Sandra (Sandra Hüller) que mora isolada em um chalé numa montanha, com seu marido o Samuel (Samuel Theis) e filho Daniel (Milo Machado Graner), sendo este praticamente cego. Em uma manhã Samuel é encontrado morto, fora de casa, e devido a dúvida se houve um crime ou acidente, Sandra é levada a julgamento.

É então que a trama mistura cenas de tribunal, um bocado de whodunnit (e sim, o filme é muito bem montado de modo que ficamos o tempo todo tentando adivinhar o que aconteceu), problemas de relacionamento familiar, e uma interessante reflexão sobre culpa e justiça.

Um outro forte fator positivo de Anatomia de uma Queda é sua atriz principal, a alemã Sandra Hüller, em excelente atuação, pela qual merecidamente ela recebeu uma indicação ao Oscar (Sandra também é uma das principais atrizes de Zona de Interesse, outro dos indicados ao Oscar de Melhor Filme). Aliás, falando em Oscar e diversidade de países, usando a "desculpa" de que a personagem de Sandra é alemã e o seu marido é da França, eles se falam em inglês como "idioma comum". Então, mesmo sendo um filme francês, pouco mais de metade dos diálogos estão em inglês. Certamente isto ajudou a ampliar o número de indicações de Anatomia de uma Queda em festivais de língua inglesa.

E mesmo já sendo um bom filme de suspense, com boas atuações, o que pra mim diferencia Anatomia de uma Queda é sua exposição sobre a "realidade" versus "o que é dito". Por exemplo, a meu ver o advogado da acusação era bem mais competente e convincente do que o da defesa; os depoimentos de Daniel foram parciais; Sandra manteve o tempo todo a versão de uma família feliz, mas as evidências mostravam um oposto assustador. E vou mais além, será que ela estava "mentindo"? Ou realmente acreditava naquilo, baseada em sua própria percepção da realidade? Cada uma destas "versões" potencialmente prejudica a "verdade" influenciando o Juri... e isto me incomodava profundamente. Mas... já pensaram no que seria exatamente "a Verdade"? E já perceberam que estas distorções e nuances estão presentes na vida real em todo julgamento, todos os dias?!

Continuarei avançando nestas reflexões... mas para isto, terei que comentar sobre o final do filme. Portanto, se você não quiser ler alguns spoilers de impacto consideráveis, pule o próximo paragrafo, e vá direto para o seguinte. 

O desfecho de Anatomia de uma Queda é... inclusivo. Não dá para saber ao certo se Sandra é inocente ou não. Será que foi suicídio? Se sim, há até a possibilidade de que Samuel tenha gravado o áudio de sua briga com a intenção de prejudicá-la. Para mim é bem claro que o filho, Daniel, acaba escolhendo tomar o partido da mãe. E neste caso... seria correto deixar alguém tão jovem e tão envolvido emocionalmente como testemunha? Mas ao mesmo tempo, estando ele na casa, seria correto deixá-lo de fora? O fato é que apesar de toda investigação e julgamento, nunca saberemos o que realmente aconteceu, e elas tanto poderiam levar alguém inocente para a prisão, quanto também ter deixado um assassino livre. E situações "inconclusivas" como esta existem na vida real a todo momento. Isto é perturbador, se pararmos para refletir. E analogamente, deixando as leis de lado, o mesmo se pode dizer a respeito dos dramas pessoais, traumas familiares... nunca saberemos o que ocorreu no interior de cada indivíduo.

Para o público geral, que está acostumado com os filmes estadunidenses, talvez haja um pouco de desconforto, no sentido de achar Anatomia de uma Queda um pouco parado, ou com muitos diálogos. Já para o público padrão que gosta de filmes de suspense (mas sem ação), tribunal, ou "adivinhe o assassino", Anatomia de uma Queda deverá agradar bem. E finalmente, para alguém que está procurando um filme mais denso, que te leve a pensar, este aqui poderá agradar bastante. Nota: 8,0.



PS: repararam que o último nome que coloquei na lista de atores principais é o Messi? Mas não se trata do famoso jogador de futebol argentino, e sim, do cachorro Messi, que atuou como o cachorro-guia "Snoop" no filme. Ele foi uma atração a parte em todos os festivais onde Anatomia de uma Queda participou, e inclusive, foi o vencedor do Palm Dog Award em Cannes: sim, desde 2001 lá existe uma premiação para a melhor atuação canina do ano, seja ela real ou de animação. Abaixo você pode conferir Messi exibindo seu prêmio, que é representado por uma coleira de couro com os escritos "Palm Dog".

domingo, 3 de março de 2024

Crítica - Duna: Parte Dois (2024)

TítuloDuna: Parte Dois ("Dune: Part Two", Canadá / EUA, 2024)
Diretor: Denis Villeneuve
Atores principaisTimothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Austin Butler, Florence Pugh, Dave Bautista, Léa Seydoux, Christopher Walken, Josh Brolin, Souheila Yacoub, Stellan Skarsgård, Charlotte Rampling
Nota: 8,5

Duna encerra o primeiro livro com grande espetáculo cinematográfico

Dois anos e meio atrás, após assistir o primeiro filme de Duna, eu disse que poderíamos estar diante "da primeira parte de uma saga única e espetacular". E com este Duna: Parte Dois, Denis Villeneuve atinge em cheio as minhas expectativas. Sua continuação supera em tudo o filme anterior: aqui temos mais história, mais cenas espetaculares e ambiciosas, mais reviravoltas e emoção.

Sendo continuação direta do filme anterior, Duna: Parte Dois termina a história contada originalmente pelo primeiro livro da saga Duna, escrito em 1965 por Frank Herbert. E não, não dá para assistir este filme sem ter antes assistido o primeiro, de 2021. Mas ele está disponível em vários lugares, como por exemplo no Prime Video e no Max - antigo HBO.

Aqui vemos Paul "Muad'Dib" Atreides (Timothée Chalamet) continuando a ganhar influência entre os Fremen, com o objetivo de iniciar uma revolta para tomar de volta o poder do planeta Arrakis. Porém seu sucesso não apenas chama a atenção dos atuais inimigos, o clã Harkonnen, como também chama atenção do Imperador (Christopher Walken) e de sua filha, a Princesa Irulan (Florence Pugh). Em paralelo a tudo isso, e alheias ao fato de que Paul ainda está vivo, as Bene Gesserit continuam articulando fortemente nos bastidores...

Sem a necessidade do primeiro filme de introduzir seu universo, e com ainda mais tempo de tela (2h e 46min contra 2h e 35min), Duna: Parte Dois consegue desenvolver melhor seus personagens - inclusive dando espaço para novos deles. Lady Jessica (Rebecca Ferguson), por exemplo, que pareceu um pouco perdida no primeiro filme, agora está muito bem utilizada. De certa forma então, este filme até "corrige" pontos do filme anterior. Se no primeiro filme tínhamos um maior foco no controle das pessoas através da força e poder econômico, aqui vemos um foco maior no controle através da religião. Ambos são igualmente poderosos e assustadores. E a velha e corrupta política está no interior de tudo isso, claro.

Também há mais tempo para apresentar novas localidades, algumas visualmente bem impressionantes, seja de batalhas, ou o mais surpreendente, de templos antigos. Novamente, é como se tivéssemos reunido o melhor de Star Wars com Game of Thrones... com o detalhe que a saga de Duna foi escrita décadas antes, deixando claro quem foi a inspiração, e quem são as "cópias".

Denis Villeneuve conseguiu deixar seu Duna com um visual e uma trilha sonora bem diferente e marcantes, e que se houver justiça, ficarão gravados na história da cultura Pop. Ele conseguiu afinal, de seu modo, adaptar um dos tais livros "inadaptáveis". Duna 1 e 2, em geral, acabam sendo bem fiéis ao primeiro livro da saga. Duna: Parte Dois, entretanto, tem mais "licenças poéticas" que o primeiro filme. Uma delas, por exemplo, é a personagem de Léa Seydoux, Lady Margot, cuja história no livro é completamente diferente da deste filme, e provavelmente isto foi feito para mudanças ainda maiores para o filme três.

Um terceiro filme?? Sim. Pois se for pra falar de algum defeito em Duna: Parte Dois, seria este. Não satisfeito em encerrar a história do livro um, o desfecho deste filme acaba avançando em um evento do livro dois, Messias de Duna. E aí temos um gancho gigantesco para uma continuação... O lado negativo? Esta modificação fez com que a história meio que exija um novo filme. O lado positivo é que se vier mesmo um terceiro filme, e for da qualidade deste... nós cinéfilos e/ou amantes de ficção científica temos muito a agradecer. Nota: 8,5.


P.S.: Duna: Parte Dois não tem cena pós créditos. Outra coisa: faça um favor a você mesmo, assista a este filme NOS CINEMAS!!!!

sexta-feira, 1 de março de 2024

Crítica - Ficção Americana (2023)

TítuloFicção Americana ("American Fiction", EUA, 2023)
Diretor: Cord Jefferson
Atores principaisJeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, John Ortiz, Erika Alexander, Leslie Uggams, Adam Brody, Keith David, Issa Rae, Sterling K. Brown, Myra Lucretia Taylor, Raymond Anthony Thomas
Nota: 8,0

Filme bem diferente de temática negra, mas universal e com ótimo final

Assim como Os Rejeitados, este Ficção Americana também é um drama cotidiano que está sendo vendido / apresentado como uma comédia, mas que entretanto pouco nos faz rir. Aliás, em Os Rejeitados até temos uma ou outra gracinha... mas em Ficção Americana não. É que em ambos os filmes, o tal humor não é direto, está presente apenas em seu intenso sarcasmo e ironia.

Ficção Americana é baseado no livro Erasure (2001) do escritor estadunidense Percival Everett. A história nos apresenta Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright), um respeitável e muito inteligente professor e escritor afro-americano. Porém, seus livros não são populares pois não são "negros o suficiente", segundo seus editores. Ao mesmo tempo, um dos maiores sucessos de vendas atuais é We's Lives in Da Ghetto, livro da escritora Sintara Golden (Issa Rae), um enorme amontoado de estereótipos, onde seus afro-americanos vivem todos na violenta, sexual e pobre periferia, falando muitas gírias e palavrões. É então que Monk, em protesto, escreve sob pseudônimo um livro para ironizar obras como as de Sintara... porém seu livro vira sucesso de vendas... e inclusive de críticas(!), deixando tudo cada vez mais confuso e complexo para nosso protagonista.

Ficção Americana é um filme... diferente. Pois apesar do tema principal ser claramente criticar toda a sociedade (e não apenas a sociedade branca, mas a negra também) por consumir e realimentar os estereótipos de raça, este assunto acaba diluído ao longo da trama. Afinal, na maior parte do tempo estamos acompanhando o cotidiano de Monk, com seus problemas de relacionamentos amorosos e familiares, com ele tendo que lidar com a recente doença degenerativa da mãe devido a idade, etc.

O filme acaba passando por vários problemas da vida adulta em geral, e faz isso de modo tão natural que as vezes parece até esquecer seu propósito crítico anti-racismo inicial. Tanto que, no começo de seu desfecho, quando o filme abruptamente retoma a questão do estereótipo racial com toda a força, estranhei e até torci o nariz... mas foi por pouco tempo, já que o final é simplesmente genial, espetacular!

Ficção Americana está indicado a 5 Oscars, dentre eles ao de Melhor Filme, e outra indicação que faço questão de destacar é a de Melhor Roteiro Adaptado, já que a estrutura do livro é bem incomum e exigiu bastante trabalho de adaptação. Quanto a indicação de Melhor Ator para Jeffrey Wright, não acho que neste filme em específico sua atuação seja fora de série (mas ele está muito bem, claro); porém ele é um ator bem competente e versátil, então fico feliz com sua primeira indicação pela Academia.

Dentre todos os filmes deste Oscar com indicação para Melhor Filme, Ficção Americana foi o último a chegar no Brasil. Ele ACABA de estrear no Amazon Prime Vídeo. Quem está procurando por um filme bom e diferente, não perca a oportunidade de conferir. Nota: 8,0

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Faltam 2 semanas para o Oscar 2024!! Conheça mais sobre os principais indicados aqui no Cinema Vírgula!


Estamos a exatas 2 semanas para o início da cerimônia do Oscar 2024, que será daqui dois domingos, em 10 de março de 2024. Abaixo segue a lista dos 10 filmes indicados ao prêmio de Melhor Filme, ordenado pelo número total de indicações. Corre que ainda dá tempo de assistir vários deles! Muitos ainda se encontram em cartaz nos cinemas, e alguns outros podem ser assistidos nas plataformas de streaming:

Basta clicar no nome dos filmes acima para (re) ler a crítica que fiz para cada um deles. Ainda não vi Ficção Americana e Anatomia de uma Queda, mas vou assistir a ambos e também publicar aqui a crítica deles dois antes da cerimônia do dia 10/03. Portanto, continue ligado no Cinema Vírgula nos próximos dias!

Ah! E quanto aos outros filmes com mais de uma indicação (mas não de Melhor Filme), e que também tiveram a crítica publicada aqui no Cinema Vírgula: Napoleão (3 indicações), Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte Um (2 indicações), e A Sociedade da Neve (2 indicações).



E como sempre... alguns comentários:

Dados os indicados ao Oscar 2024, há um aspecto que vejo como bem positivo: sua diversidade. Afinal, se percorrermos pelos 10 indicados aos melhor filme, veremos que há temas como o empoderamento feminino, violência contra indígenas, tratamento aos afro-americanos, um filme francês, e um filme que embora estadunidense, mostre bastante da cultura sul-coreana. Mas, claro, temos também dois filmes sobre a Segunda Guerra Mundial... é impressionante como a Academia não se cansa deles...

Porém tirando o elogio inicial, fiquei decepcionado com várias indicações. E as principais causas destas decepções são dois nomes: Barbenheimer e Bradley Cooper.

Primeiro quanto ao Barbenheimer. Eu entendo perfeitamente que o Oscar é um evento comercial, e então não só compreendo que Barbie e Oppenheimer estejam entre os 10 indicados a Melhor Filme, e que ambos recebam múltiplas indicações, como ficaria indignado se isso não acontecesse! Afinal, com suas grandes bilheterias, eles salvaram os cinemas em 2024!

Mas dito isso, não eram pra receber tantas indicações assim. 13 para Oppenheimer? Jamais. E indicações para Barbie como as para Melhor Roteiro Adaptado e de Melhor Atriz Coadjuvante para America Ferrera são muito forçadas, para não dizer outra coisa... mesmo a indicação para Ryan Gosling eu entendo ser um exagero... se tivesse que indicar um ator ou atriz por Barbie, esse nome só poderia ser Margot Robbie, que está excelente. Mas ela não recebeu a indicação... é mesmo revoltante. Em resumo, toda a tal diversidade que elogiei para o Oscar de Melhor Filme morreu lá mesmo, porque com 21 indicações somadas, o Barbenheimer "tomou" lugar de várias outras pessoas e filmes que poderiam (e mereciam) ter maior reconhecimento.

E finalmente... Bradley Cooper com seu terrível Maestro. Como pode a Academia, em pleno 2024, ainda dar tanto espaço para uma obra tão presunçosa, e tão egocêntrica? Se tem uma coisa que vou fazer neste Oscar é torcer para se repita a cena em que ele perde o Globo de Ouro de melhor ator para Cillian Murphy, e faz uma carinha de gol contra (ver abaixo).

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Lembrando que semanas antes do Globo de Ouro, Cooper em entrevista a um talk show, estava comentando / se gabando de ter estudado por cerca de seis anos para atuar como Leonard Bernstein: "É preciso uma tremenda preparação para atuar. Não foi como se você recebesse uma ligação e, em seis meses, você tivesse que fazer o filme. Isso teve que levar anos…". Como Cillian Murphy levou exatamente seis meses para fazer o físico Oppenheimer, em teoria isto teria sido uma indireta para ele...


Se você chegou até aqui, uma dica para quem têm Netflix: dos 5 indicados ao Oscar de Melhor Curta, dois deles se encontram lá. Bora assistir... são rapidinhos! São eles: e Depois? e A Incrível História de Henry Sugar. Aproveitem!

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Crítica - Pobres Criaturas (2023)

TítuloPobres Criaturas ("Poor Things", EUA / Hungria / Irlanda / Reino Unido, 2023)
Diretor: Yorgos Lanthimos
Atores principaisEmma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Christopher Abbott, Kathryn Hunter, Jerrod Carmichael, Kathryn Hunter, Hanna Schygulla, Margaret Qualley, Suzy Bemba
Nota: 8,0

Emma Stone foi uma escolha perfeita para este Frankenstein atualizado e feminino

Depois de conseguir alguma fama e algumas indicações ao Oscar com seus filmes sempre estranhos, como O Lagosta (2015) e A Favorita (2018), parece que agora é mesmo a grande chance do diretor e roteirista grego Yorgos Lanthimos, já que este seu Pobres Criaturas está indicado a 11 estatuetas, e dentre elas a de Oscar de Melhor Filme.

Na história, temos a jovem Bella Baxter (Emma Stone), que aparentemente é trazida de volta à vida pelo cientista e médico cirurgião Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). Porém, por motivos que entenderemos depois, é como sua mente estivesse vazia, e ela tivesse nascido pela primeira vez. Ingênua e muito curiosa, ela acaba fugindo com o mal intencionado advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) em uma turnê pelo mundo, onde faz diversos aprendizados.

Lembrando que não temos aqui uma história original, e sim, a adaptação de um livro de mesmo nome, publicado pelo escritor escocês Alasdair Gray, em 1992. Como curiosidade, há várias diferenças entre o livro e este filme, e se tiver interessado nelas, leia o P.S. do final deste artigo. Há também uma considerável diferença estética... Yorgos Lanthimos retira a história original do século XIX "real" e o coloca em um mundo mais "fantasioso", estilizado... Isso garante a Pobres Criaturas belíssimas fotografias, figurinos e design de produção; não a toa o filme também recebeu indicação ao Oscar nestas três categorias.

Emma Stone e sua Bella Baxter são fascinantes. É difícil imaginar uma outra atriz que viveria tão bem este papel. Emma está incrível, e apenas acompanhar a jornada de descobrimento e empoderamento de sua Bella neste Pobres Criaturas já é um excelente e curioso entretenimento. E não é só ela que brilha na atuação. A lista de atores que participam da produção é grande e de boa qualidade. Mas destaco especialmente Mark Ruffalo e Willem Dafoe, que estão muito bem também.

Apesar de ser um ótimo filme, e certamente marcante, nem tudo é perfeito. Uma desvantagem é que os filmes de Yorgos Lanthimos são tão bizarros que acabam passando do ponto, e este efeito acaba por "diminuir" boa parte da reflexão ou questionamento social / moral presente na história, que aliás estão lá, é claro. Bella Baxter é sem dúvida uma formidável e destemida heroína contra o mundo do patriarcado. O excesso do "bizarro" infelizmente desvia um pouco do foco às críticas contra o machismo, e contra a soberba da alta sociedade, e está não só nos exageros dos personagens caricatos, mas até no modo que o diretor filma. Por exemplo, muitas das cenas são filmadas com ângulos estranhos ("tortos"), ou com efeito "olho de peixe"... e no começo, isto sempre tem relação com "confusão", "confinamento" ou "olhar de uma criança", e faz todo o sentido. Porém conforme o filme vai passando, estas cenas "estranhas" continuam a aparecer, mas já sem ter contexto nenhum, me parecendo ser um simples capricho estético.

Outra desvantagem é que em determinados momentos o filme acaba "amenizando" demais as situações, tornando-o bem inverossímil, especialmente durante o segmento em Paris. E reafirmo a existência desta "suavização" mesmo com a considerável quantidade de cenas de sexo (sim, corretamente o filme é apenas pra maiores de 18 anos). Tanto é verdade que ela existe, que há críticas de que o filme romantiza a prostituição (o que já neste caso, não concordo).

É muito interessante a conclusão que se pode fazer comparando esta adaptação de Pobres Criaturas com o livro de Frankenstein, sua óbvia inspiração. Aqui temos uma clara atualização / reinvenção da obra de Mary Shelley, inclusive atualizando sua narrativa com toda a tragédia e pessimismo que vivemos atualmente. E então temos uma curiosa inversão: no Frankenstein literário o mundo era mais belo, fervendo em idéias, mas o "monstro" era um infeliz pessimista; já em Pobres Criaturas é o mundo que é terrível, e o "monstro" é otimista, feminino e triunfante. E no meio de tantas notícias ruins atuais, talvez seja esse o exemplo e a heroína que precisemos. Nota: 8,0.




P.S.: Diferenças entre o filme e livro (fortes spoilers a partir daqui, leia por conta e risco).

São várias diferenças, porém irei focar nas duas principais. A primeira dela se refere ao narrador. No romance original, é como se ele fosse na verdade um livro de memórias do personagem de Max McCandles (Ramy Youssef), e ainda, em anexo às "memórias", um também fictício editor do livro encerra a obra anexando no final um texto com observações escritas por Bella, onde em geral ela conta que "tudo o que foi escrito é invenção de seu marido, que tinha imaginação muito fértil...". Já no filme, embora não tenhamos um narrador "de fato", na maioria do tempo a história é contada sob o ponto de vista de Bella.

A segunda grande mudança é o final das histórias. No livro, ao serem confrontados no casamento de Bella com McCandles pelo seu primeiro marido, ao contrário do filme, os homens acabam brigando, mas no final o antigo esposo vai embora e eles retomam o casamento. E, alguns meses depois, é McCandles quem morre, por ter saúde frágil. Então o livro se encerra abruptamente, dando espaço para as tais notas finais de Bella - que irão negar a história de seu marido - que citei no parágrafo anterior.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Você PRECISA conhecer Supergirl: Mulher do Amanhã (e tem Brasileira envolvida!)


Tom King é um dos principais escritores de quadrinhos da DC Comics da última década. E na minha opinião, bastante irregular... já que entregou trabalhos sensacionais como a minissérie Senhor Milagre (2017), ou lixos completos como por exemplo a também minissérie Heróis em Crise (2018). Também em 2018 ele tentou fazer sua HQ space opera com o Superman, em Superman: Para O Alto e Avante, que é legalzinha, mas não trouxe nada de especial...

... mas três anos depois, ele voltou a tentar uma space opera, agora com a Supergirl... e o resultado foi espetacular. Supergirl: Mulher do Amanhã é uma HQ excelente, tão boa que foi uma das obras indicadas ao Eisner Award (o "Oscar" dos Quadrinhos) de Melhor Minissérie de 2022, e que merece ser conhecida por todos.

A história, que é uma aventura pelo espaço, 100% fora do planeta Terra, é narrada por Ruthye, uma jovem que teve seu pai camponês covardemente assassinado, e então contratou a Supergirl para matá-lo em vingança. Ué... mas não faz sentido que ela aceitasse esse tipo de missão... verdade, por isso você precisará ler para entender rs.

Deixando claro, Supergirl: Mulher do Amanhã é uma história emocionalmente pesada (ou seja, não é nada infantil), e é sim uma história de super-herói (ou seja, com bastante aventura e ação), mas dito tudo isso, também é uma história sobre (muita) compaixão, coragem e força feminina. Tom King acaba propondo o seguinte... e se todo o universo fosse machista? Bem, aí ser uma mulher e ser a prima do Superman torna as coisas tudo muito mais complicadas...

E não é só isso. Supergirl: Mulher do Amanhã acaba também recontando uma origem para a Supergirl que faz dela uma das personagens de passado mais dramático de todo o Universo DC. Isso acaba a tornando uma das personagens mais fortes e admiráveis que você já leu. De "defeitos", a história acaba tendo uns "furos" nas leis da Física, mas dá pra relevar rs.

E toda esta bela e emocionante história é brilhantemente ilustrada por uma brasileira! Trata-se da paulistana Bilquis Evely, que aliás já há alguns anos vêm brilhando na DC Comics, como por exemplo  também em Mulher Maravilha e Sandman. Os traços de Bilquis (que você pode ver nas imagens deste artigo) acabam combinando muito bem com Supergirl: Mulher do Amanhã. Sua Supergirl é ao mesmo tempo delicada e forte; suas paisagens, ao mesmo tempo "alienígenas" e cinematográficas. E contribuindo com seus desenhos, a colorização é feita pelo também brasileiro Matheus "Mat" Lopes, e é excelente. Principalmente as cenas sob os céus dos planetas alienígenas são incríveis, parece que você está mesmo no espaço. Deslumbrante!

Para quem é fã de quadrinhos, principalmente fã da DC, Supergirl: Mulher do Amanhã é imperdível. Já pelos temas e personagens envolvidos, e por ser uma minisérie de história completa e fechada, é uma ótima sugestão para mulheres entrarem no mundo dos quadrinhos.


Supergirl: Mulher do Amanhã nos cinemas!

Sim! Outra "prova" de que a história de Supergirl: Mulher do Amanhã é boa é que recentemente, mais precisamente neste 29 de Janeiro, James Gunn - o atual chefão dos filmes da DC - anunciou que Milly Alcock, a moça da foto acima e conhecida por interpretar a Rhaenyra Targaryen na série A Casa do Dragão (HBO), foi a escolhida para ser a Supergirl do futuro filme... Supergirl: Mulher do Amanhã (!). O filme será sim baseado na história dos quadrinhos e, embora não tenha data prevista para lançamento, deverá ser lançado, segundo Gunn, "cerca de dois anos após o novo filme do Superman".


E caso você tenha chegado aqui e ainda não tenha se decidido a ler este quadrinho, seguem mais duas imagens como golpe de misericórdia. ;)


Bilquis Evely e um pouco de sua obra

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Crítica - Os Rejeitados (2023)

TítuloOs Rejeitados ("The Holdovers", EUA, 2023)
Diretor: Alexander Payne
Atores principaisPaul Giamatti, Dominic Sessa, Da'Vine Joy Randolph, Carrie Preston, Brady Hepner, Andrew Garman, Naheem Garcia
Nota: 7,0

Com filme agradável, Payne continua suspirando pelo passado

Após trabalharem juntos em Sideways - Entre Umas e Outras, de 2004, o diretor Alexander Payne e o ator Paul Giamatti voltam a parceria com este Os Rejeitados. E é muito comum na obra de Payne termos um protagonista com mais idade, lembrando com saudosismo dos tempos em que tudo era mais direto e simples. Porém aqui ele dá um passo além ao nos transportar duplamente a este passado - pois estamos em 1970 - e o personagem principal, o professor de história Paul Hunham (Paul Giamatti) é um apaixonado por um passado ainda mais distante, a antiguidade, especialmente os clássicos gregos.

Na história, Paul é um impopular professor de um internato estadunidense, que é forçado a ficar como "babá" de alguns alunos que não tinham para onde ir durante as festas de Natal. Neste contexto, algumas situações acabam aproximando ele do aluno Angus Tully (Dominic Sessa), e da cozinheira-chefe e recém enlutada Mary Lamb (Da'Vine Joy Randolph). E o filme acaba contando um pouco da interação e vida do trio.

Os Rejeitados chega a fazer algumas interessantes criticas sociais em seu começo, mas não se aprofunda. Aliás, apesar de mostrar os dramas pessoais dos três protagonistas, em nenhum momento o filme chega a ser "pesado"... dificilmente vemos qualquer conflito e tudo acaba sendo um... "bola pra frente". Isso certamente torna Os Rejeitados mais leve, quase um filme Natalino (ainda que não seja de fato um filme feliz, ou uma comédia). Ainda assim, não me sai da cabeça que esta "solução" apresentada tantas vezes (a de deixar quieto e seguir em frente) é bem como se fazia nos anos que o diretor tanto tem saudade.

Entretanto, deixo claro que apesar do meu parágrafo anterior, Os Rejeitados não ignora os sentimentos de seus personagens e também, apesar de unir temas comuns de filmes de Natal e de "perdedores", felizmente foge bastante de clichês.

Os Rejeitados recebeu 5 indicações ao Oscar, incluindo a de Melhor Filme, o que considero um exagero. É sim um bom filme, e agradável para assistir, mas peca por falta de força crítica, e também não entra entre os meus 10 melhores filmes produzidos pelos estadunidenses em 2023. Acho que das 5 indicações, manteria as duas dada aos atores e só. Nota: 7,0

Crítica - Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023)

Título : Indiana Jones e a Relíquia do Destino ("Indiana Jones and the Dial of Destiny", EUA, 2023) Diretor : James Mangold Atores...