Gostei tanto do filme
Meu Pai, que lhes trago uma novidade: pela primeira vez em meu blog, publico um texto que não fui em quem escreveu. Ele é de autoria da minha amiga Vanessa, psicóloga, e não é uma análise cinematográfica sobre o filme: trata-se de suas impressões e reflexões após tê-lo assistido.
O texto a seguir apresentará vários spoilers, portanto é bem melhor que você o leia apenas após ter visto o filme. Vá assistir Meu Pai e depois volte aqui para apender um bocado. Espero que vocês gostem tanto do texto da Vanessa quanto eu gostei. Abraços!
O filme é muito comovente. Mostra o demenciamento a partir da vivência de Anthony, o mesmo nome do ator (Anthony Hopkins), e isso no decorrer do filme nos confunde e nos faz questionar se é a perspectiva do ator ou apenas uma coincidência com o nome do personagem. A sensação de confusão é uma característica importante na forma como a história é narrada, o que nos leva a ficar mais próximo da experiência emocional da senilidade.
Nos sentimos perdidos e vulneráveis frente ao processo de desrealização que a demência provoca. Alucinações visuais, auditivas, perda da noção de tempo e espaço são sintomas psicóticos da demência, muito bem representada no filme. A regressão das capacidades mentais de Anthony é uma decorrência da senilidade, ou seja, um processo de desligamento "natural" do cérebro.
Pensando nos vínculos é possível perceber que foi uma família com uma história marcada por conflitos e perdas, ou seja, uma família comum. Não temos a oportunidade de conhecer mais a fundo tais relações familiares, mas vemos um contexto de cuidado e amor. Anne é o vínculo real, aquele que Anthony busca para saber que está seguro no fim da vida, assim como a mãe e o bebê, no início de tudo. Está com medo, não aceita outras cuidadoras, recusa-as assim como à doença.
De maneira geral, a constatação da vulnerabilidade da vida, do não controle e da impotência frente às perdas e ao envelhecimento, gera sentimentos ambivalentes que são demonstrados, por exemplo, através da agressividade e carinho de Anthony à filha. Já Anne se dedica ao pai até o limite de suas possibilidades e os seus sentimentos naturais de ambivalência aparecem também: amor, raiva, medo, coragem, desejo de morte, acolhimento, etc. Ela sofre pelo paradoxo de lidar com sua impotência frente à doença e pelo desejo de viver uma nova vida. Decide por trata-lo numa instituição e isso em nossa sociedade é uma decisão muito difícil e passível de julgamento.
É inevitável pensar nas diferenças entre a elaboração da morte como um processo natural da vida e na dificuldade de elaboração do luto no caso de morte acidental. Anthony perdeu a outra filha vítima de um acidente que deixou marcas de difícil assimilação para ele. Por fim, o filme nos mostra o processo triste e irreversível da constatação do envelhecimento e da morte como um processo solitário, frente à demência. Sim, as folhas caem, os galhos secam, o tronco enfraquece, perde-se a sensação do vento!!
Em relação aos detalhes cenográficos que me chamam a atenção, o primeiro que me deixa intrigada são as várias portas que aparecem no apartamento, em todas as cenas, e que nos aproxima da vivência de Anthony, nos deixando meio perdidos, com muitas entradas e saídas que levam ao mesmo lugar; os vários objetos no apartamento, que podem indicar uma vida cheia de histórias e vão saindo de cena no decorrer do filme e os dois homens que trazem um clima de rivalidade masculina às cenas. Em relação aos objetos e aos homens a confusão fica por conta de não sabermos ao certo se é pelo impacto da notícia da mudança da filha ou se são parte do delírio. Nem sabemos se a mudança da filha para Paris é real. As roupas de Anne se tornam um marcador temporal e espacial, como se cada roupa indicasse um dia específico. Outro objeto importante e central é o relógio, pela referência ao tempo, controle e claro, realidade. A desorientação temporal é um dos sintomas psicóticos, na demência.
Ao final, já no quarto da instituição, existe apenas uma porta, ou seja, uma possibilidade de acessar a realidade o que leva Anthony a um momento de lucidez (sustentada por pouco tempo) e então, ele sente! Essa cena é para mim a mais comovente, marcada pela constatação da perda da onipotência. Ele 'desmonta' nos braços da enfermeira, chora (e nós também) como uma criança pequena pedindo pela mãe. Na última cena com as árvores cheias de folhas do lado de fora mostra que a vida segue acontecendo e que a morte pelo envelhecimento é um processo, não um acidente.
Vanessa T. Calderelli Winkler